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terça-feira, 7 de janeiro de 2014




Ele é médico legista e ela não consegue deixar de pensar nisso enquanto fazem amor. Toca-lhe de uma forma tão precisa, tão leve, tão cirúrgica que ela  sente-se mais exposta do que alguma vez no passado. Sabe que ele conhece em pormenor todos os músculos, todos os tendões, todas as artérias e todas as veias do seu corpo. Sente-lhe os dedos deslizando pelos braços, em redor do peito, através do abdómen e não consegue evitar um arrepio de temor. Como se, a qualquer instante, com um gesto suave e preciso, usando uma unha como bisturi, ele pudesse abrir-lhe um golpe na carne e entrar-lhe verdadeiramente no corpo. Está consciente de que é uma estupidez pensar tal coisa: ele é amável, atencioso, até um pouco tímido (e tráz sempre as unhas bem curtas). Mas não consegue evitar o pensamento.
Na realidade, é forçada a admitir que não desejava evitá-lo. Que procurava a sensação que a transformara numa parte essencial do acto amoroso. As capacidades dele para ler o corpo humano, para identificar zonas frágeis, para o desmembrar, se fosse preciso, haviam-se tornado num elemento de excitação adicional.
Meses depois do início da relação abordou finalmente o assunto. Perguntou-lhe: «O meu corpo é muito diferente dos corpos com que lidas no trabalho?» Os olhos dele arregalaram-se de surpresa. Ela ponderou se teria sido a primeira mulher a colocar-lhe a pergunta. Depois pensou que talvez a surpresa dele resultasse não de ser a primeira vez que lhe faziam a pergunta mas de, tanto tempo decorrido após o início da relação, já não a esperar. Antes de ele responder, acrescentou: «O que quero dizer é: quando acaricias o meu corpo notas as semelhanças com os corpos que autopsias? No fundo, é só carne, não é?» As palavras soaram-lhe inadequadas e brutais e ela arrependeu-se de ter iniciado aquele diálogo. Mas ele recuperara a expressão de beatitude.
Quase sorria, na verdade. Disse: «Não, não noto as semelhanças. Noto as diferenças.»
Foi nesse momento que a relação deles entrou numa nova fase.

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